As palavras são mantidas em segredo, atravessam gerações e passam de pai para filho em forma de oração. As frases são repetidas mentalmente, estão nos terços, folhas de árvores e arbustos, velas, copos d’água e, uma energia fluindo para levar a cura. Em Juatuba, homens e mulheres preservam um ofício que atrai milhares de pessoas, independentemente da classe social: benzer contra mau-olhado, espinhela caída, enxaqueca, cobreiro e outros males do corpo e da alma.
Para manter viva a tradição oral, os benzedores e benzedeiras do município foram registrados em 2017 como patrimônio imaterial da cidade, os primeiros do Brasil. O reconhecimento visa preservar a memória da comunidade em relação à prática, parte do cotidiano e da identidade da cidade, sobretudo no que tange aos conhecimentos empíricos e de origem popular.
“As mulheres e homens que chegavam à Juatuba, traziam os conhecimentos que haviam adquirido, em gerações de mães e avós, que viveram antes do advento da maioria dos recursos tecnológicos do século XX. Os conhecimentos empíricos de ervas medicinais, raízes, das forças da natureza e dos ciclos de vida e morte, eram os saberes dos quais dispunham para enfrentar enfermidades, acidentes, contratempos”, explica a historiadora, Sônia dos Anjos.
Tais pessoas, sobretudo as mulheres, responsáveis pelos filhos e pelos doentes, em uma época sem maiores recursos que a fé e os conhecimentos ancestrais, buscavam como podiam maneiras de aliviar dores, tratar sintomas ou mesmo procurar, no insondável da fé, meios de socorrer os que precisavam. Dentro deste contexto, surgiram os benzedores, e sobretudo, as benzedeiras de Juatuba.
“A benzedeira não é uma médica, uma pessoa com formação científica, mas ela conhece determinados saberes que se relacionam com a qualidade de vida das pessoas. Por exemplo, uma mãe que percebe um desconforto em seu neném, pode encontrar acolhimento em uma benzedeira, e essa pode resolver aquela questão. No caso específico de Juatuba, as benzedeiras têm uma peculiaridade de encaminhamento à postos de saúde, quando não podem resolver, porquê o que é problema da benzedeira, o médico não resolve e vice-versa”, conta a mestre em patrimônios sustentáveis, Simone Ramos.
Desafios na modernidade
A fé nos santos católicos, sobretudo a devoção por Nossa Senhora, serviu, e ainda serve, como alento, esperança, refúgio, cura ou, pelo menos, alívio de enfermidades. No ofício, uma benzedeira normalmente indica a outra e, ao buscar ajuda das mais antigas, umas aprendiam a benzeção com as outras e passavam esse saber adiante.
“Para ser benzedor ou benzedeira não basta o interesse e o conhecimento. Benzer é um dom que requer, praticamente, a aceitação de um sacerdócio, pois quem benze oferece seu saber, seu corpo como instrumento do divino e, na maioria das vezes, sua casa como o espaço do seu ofício. O benzedor, portanto, além do saber e do querer, precisa poder benzer, ter quem o ensine e o apoio familiar são imprescindíveis”, relata Sônia dos Anjos.
Para Simone as mudanças e a modernidade não fazem com que a cultura desapareça, pelo contrário, algumas se adaptam a elas. “A tecnologia e informação atendem para o bem e o mal e, ao mesmo tempo que as coisas estão mais fáceis por uma questão de logística e, isso tira um pouco da força da questão do benzimento, por outro lado, há benzedeiras que benzem à distância, por telefone”, afirma.
Patrimônio Imaterial
Ao tratar do Patrimônio imaterial, observa-se que são muitos os desafios enfrentados no que diz respeito à preservação da identidade. “Algumas estratégias com foco na preservação das nossas tradições culturais são imprescindíveis para preservação do nosso legado. No caso dos benzedores e benzedeiras de Juatuba, estas estratégias envolvem o planejamento, o monitoramento, a atuação do poder público e envolvimento da comunidade no processo”, descreve a historiadora, Sônia dos Anjos.
Em 2015, em parceria com Simone Ramos, a historiadora realizou entrevistas e conversas individuais com os detentores destes saberes, com o objetivo de cadastrá-los e construir uma cartilha do saber popular, que se tornou um livro “Evocações do Sagrado”.
“Em nosso contato com as benzedeiras e os benzedores podemos afirmar que foi um enorme prazer. São pessoas que transmitem paz e bondade, pois praticam o bem para o próximo. Possuem uma fé fervorosa e são extremamente humildes, na prática da fé e do ato de benzer”, relata Sônia.
O reconhecimento dos benzedores como patrimônio imaterial, os dá o valor merecido no cotidiano da comunidade. “Ações de educação para patrimônio, para informar e conhecer sobre o bem em questão e ajudar a dirimir o preconceito e fomentar o respeito às diferenças, são atos que podem ajudar na perenidade do ato de benzer e no entendimento desse benefício, no cotidiano da comunidade”, finaliza Sônia dos Anjos.